Prevenir e paliar
Caro leitor, há poucos dias conversamos um pouco sobre o conceito de prevenção quaternária (se não viu, confira: clique aqui para ler).
Desse texto, lembre-se que P4 refere-se a um conjunto de ações que visam identificar pessoas e populações sujeitas a risco de intervenções médicas desnecessárias, protegê-las das iatrogenias, prestando cuidados eticamente aceitáveis. É, portanto, um eco do adágio multissecular: primum non nocere, ‘primeiro não prejudicar’ ¹, o princípio bioético da não maleficência.
Em meio a uma prática em saúde altamente prescritiva, voltada para procedimentos e investigações, a P4 retoma os ensinamentos hipocráticos (conversamos um pouco sobre isso em nosso post de lançamento: clique aqui para ler).
O problema é que nós, como profissionais de saúde, às vezes temos dificuldade em aplicar esse conceito: saber quando fazer menos é fazer melhor. No texto “Dezembro cor de burro fugido” problematizamos principalmente a lógica de programas de Rastreamento, mas hoje gostaria de trazer a questão da polifarmácia, principalmente levando em conta a população idosa.
Para tratar disso, poderia, trazer um texto bem técnico, e em algum momento o faremos. Contudo, como uma boa MFC, sou muito chegada a “Causos Clínicos”, pela importância que damos às narrativas e trajetórias das pessoas sob nossos cuidados. Dessa forma, segue mais um causo:
D. Lourdes, adorava o período Natalino, não pelas compras ou músicas, e sim, pelo significado daquela família humilde de imigrantes presenciando o mistério do Nascimento, talvez por isso, unido a sua formação cristã-católica e por ela mesmo, na infância, ter passado por situações de carências variadas, sempre teve apreço especial pelos presépios, a cada ano fazia questão de montar um, junto à sua decoração natalina, mas ainda não havia conseguido um da maneira que gostaria, com todos os personagens e iluminação… Representando aquele momento grandioso e ao mesmo tempo tão simples.
Uma idosa independente, matriarca, viúva, dizem que por volta da sua 9ª década de vida (imprecisão proposital, pois nem para os médicos revelava sua idade), com 5 filhos, 12 netos, 1 bisneto sempre à sua volta, já apresentava uma Doença Arterial Coronariana estabelecida, inclusive com Cirurgia de Revascularização Miocárdica realizada por volta dos seus 60 anos e outras tantas angioplastias feitas ao longo dos anos. Momentos sempre de muita angústia, uma vez que o marido falecera em casa, após episódio de Infarto agudo e a irmã, em uma mesa de Angioplastia. Mas, apesar de todos os cuidados preventivos feitos em seu caso, lá por volta dos seus 90 anos, aquela angina que já a acompanhava a tempos, não quis ir embora, como sempre acontecia. E para seu desespero e dos familiares, sobreveio um Infarto Agudo do Miocárdio.
Após 15 dias em unidade de terapia intensiva, voltou para casa, lúcida, porém fragilizada por Insuficiência Cardíaca (FE em torno de 25%, NYAH IV – ou seja, sintomas de cansaço até mesmo em repouso).
Como era de se esperar, após um procedimento de nova Angioplastia, recebeu como uma das medicações a Dupla Antiagregação Plaquetária – Recomendação IA pela ACC/AHA e ESC – ótima evidência científica para se PREVENIR novos eventos nesses casos. Não fosse um contínuo sangramento gástrico… Foram mais de 3 meses com novas internações por sangramentos que a deixavam instável hemodinamicamente e nesses momentos, transfusões e iatrogenias… Excesso de volume que diversas vezes causavam edema agudo de pulmão e novas idas ao CTI entubações… E a família, que havia respirado aliviada pela sobrevivência com poucas sequelas do infarto, revivia o medo, angústia de perdê-la a cada internação. Soma-se a isso, a prática médica usual, profissionais com pouca habilidade comunicativa, superespecializados, “Do coração cuido eu, sem esses medicamentos ela poderá sofrer novo infarto, poderá morrer”.
Morrer… Refletiu a família, talvez pela primeira vez, não poderemos todos? Essas excessivas internações já não estão a diminuir sua vitalidade diariamente? Mas e o medo… Sem esse remédio pode parecer que não estamos a fazer nada para impedir!
Conferências familiares, conversas com D Lourdes, que nesse momento mostrava enorme vontade de viver, de viver bem e a decisão por procurar o auxílio de profissionais com uma visão integral desse ser humano. Uma das muitas intervenções importantes foi justamente a retirada de várias medicações “preventivas”, dentre elas a dupla antiagregação, outra, foi iniciar uma conversa sobre a perspectiva de cuidados paliativos.
Nossa protagonista viveu mais 2 anos após essas intervenções, sem nenhum episódio de sangramento, sem necessidade de transfusão, idas ao CTI, entubação ou mesmo mais de 48 horas em uma unidade hospitalar. Poucas crises de Edema Agudo resolvidas com Ventilação Não-Invasiva.
Conseguiu ir no casamento da neta, conseguiu preparar seu espírito e amenizar a partida para seus familiares, conseguiu no seu último Natal comer seu prato preferido (bacalhau) junto com as rabanadas e até panetone, junto de sua família, que a ajudou a conseguir montar o sonhado presépio.
Faleceu um mês após, na serenidade do seu quarto, na casa que seu esposo construiu, aonde um dia dele se despediu e, segundo a crença dos familiares, junto dele foi desfrutar a eternidade.
E, (agora exponho meu conflito de interesse) para mim, a neta que casou, mesmo sem que você saiba, vovó, o seu “causo” deu significado a toda minha escolha por ser Médica de Família e Comunidade e me lembrar diariamente: ”primum non nocere”.
Obrigada!
Gabriela Persio
Médica de Família e Comunidade – SUS-BH
Coord. PRM-MFC-HOB
Professora Dexpertio
Referências bibliográficas:
¹ Jamoulle M, Gomes LF. Prevenção Quaternária e limites em medicina*,**. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. 2013 Dec 31;9(31):186.
² DynaMed [Internet]. Ipswich (MA): EBSCO Information Services. 1995 – . Record No. 114649, Antiplatelet and anticoagulant drugs for coronary artery disease; [updated 2018 Oct 09, cited place cited date here]; [about 49 screens]. Available from http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=dnh&AN=114649&site=dynamed-live&scope=site. Registration and login required.